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Renato Mendonça

Jornalista e mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Editor de teatro no jornal Zero Hora, de Porto Alegre (RS), por 15 anos. Desde 2007, frequenta a Oficina de Dramaturgia orientada pela diretora Graça Nunes. É coordenador da Escola de Espectadores de Porto Alegre (EEPA), projeto da secretaria de Cultura de Porto Alegre, desde março de 2013. Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, da prefeitura de Porto Alegre, e do Prêmio Braskem em Cena, do festival Porto Alegre Em Cena. Debatedor convidado do festival riocenacontemporânea de 2006 (Rio de Janeiro). Membro da International Association of Theatre Critics (IATC).

 

 

Crítica - Relatos de viagem

de um fusca a vela

Por Renato Mendonça

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A participação da Ueba Produtos Notáveis no 8° Fitrupa permitiu que se fizesse um experimento de observação quanto aos aspectos de encenação e recepção na medida em que o grupo de Caxias do Sul (RS) apresentou “As Aventuras do Fusca a Vela” em três locais diferentes de Porto Alegre, em três dias diferentes, para públicos com perfis diversos. Evidentemente, as conclusões devem ser consideradas à luz da subjetividade de quem observa, pelas circunstâncias de cada apresentação, pelo fato de o observador assistir por três dias seguidos ao mesmo espetáculo, entre outros fatores envolvidos.

Importante registrar a bagagem que o Ueba reuniu em 12 anos de existência: o grupo cria espetáculos para palcos tradicionais e para locais alternativos, já participou de eventos no Chile, Venezuela e Itália, possui uma sede instalada em um moinho centenário de Caxias do Sul, a partir desse ano tomou a iniciativa de organizar um festival de teatro de rua. Em contraponto com esta experiência plural e consistente, a atriz Aline Zilli, logo após uma das apresentações de “As Aventuras...”, observou que o grupo ainda a considera uma montagem em fase de maturação, já que encenada ao público apenas 15 vezes. Ela estima que, com o dobro de apresentações, já se poderá falar em um espetáculo amadurecido.

Antes de passarmos às impressões colhidas durante cada uma das três apresentações, daremos uma visão geral de “As Aventuras do Fusca a Vela”.  A dramaturgia de Márcio Silveira (do grupo porto-alegrense Manjericão) parte do clássico “Moby Dick”, escrito por Herman Melville em 1851, para narrar o encontro do garoto Jonas (Aline Zilli) com o dono de um ferro-velho tido como louco, chamado de Ismael (Jonas Picolli).

O centro da narrativa é um Fusca visivelmente degradado, estacionado no ferro-velho. Durante uma brincadeira, uma bola atinge acidentalmente o automóvel e Ismael flagra Jonas junto ao veículo. A partir daí, a fantasia assume, sem maiores compromissos de verossimilhança: Ismael usa uma perna-de-pau, se diz sobrevivente da caçada a Moby Dick e convoca Jonas a servir como grumete em seu barco, retomando a perseguição à baleia. A trama avança pelo que seria a iniciação de Jonas, arpando um tubarão, pelo enfrentamento a um ameaçador tufão, pelo encontro com uma sereia, até desaguar no confronto final entre Ismael e Moby Dick.

A encenação de Jonas Picolli se centra no Fusca. O veículo é bem explorado externamente, especialmente graças a uma plataforma montada sobre o teto do carro, que sustenta um mastro e serve de tombadilho para a jornada de Jonas e Ismael. O interior do Fusca favorece algumas aparições surpreendentes durante a peça, enquanto a buzina e a aceleração do veículo são utilizados na sonoplastia. Em situação de rua, especialmente quando há muito trânsito de pessoas, a proposta de uma encenação em plano elevado, desenvolvendo-se principalmente no tombadilho, é um acerto.  O Ueba também utiliza microfones sem fio para todo o elenco, com resultados variados, com veremos adiante.

Conscientes do valor do elemento-surpresa em uma encenação de rua, o Ueba faz esguichar água pela ponta do mastro, acende um triângulo de fogo à guisa do choque de placas tectônicas e, especialmente, liberta bonecos articulados de uma sereia e de tubarões para desfilarem e interagirem com a plateia. Além disso, um drone rudimentar sobrevoa o público como se fosse uma gaivota, ao som da épica “Cavalgada das Valquírias”, de Wagner. Outra boa sacada é quando os dois piratas ajudantes de Ismael avançam mancando e batendo facões em suas botas, compondo um efeito sonoro que enfatiza o tom de aventura e risco na jornada de Jonas – e do público.

A primeira apresentação de “As Aventuras do Fusca a Vela” no 8º Fitrupa se deu na esquina da Rua dos Andradas com a Rua Gen. Câmara, na zona central de Porto Alegre, numa sexta-feira, por volta das 17h.  Previsivelmente, local e horário de expressiva passagem de público. Além disso, importante lembrar que, de acordo com a proposta do festival de ocupar o Centro da cidade, havia no mínimo mais cinco grupos apresentando-se no mesmo instante. Esta simultaneidade, em nosso entendimento, repercute ao menos de duas maneiras no público: ao mesmo tempo em que a quase onipresença reforça o valor do teatro, também pode implicar dispersão ao provocar nos espectadores a vontade de colher “degustações” das várias atrações, não se fixando em nenhuma.

Uma das melhores estratégias do Ueba mostrou sua eficácia já na largada: Jonas e dois amigos iniciam a peça sutilmente, ao fazerem alguns espectadores se juntarem a eles na brincadeira de jogar a bola de um para o outro. No público de 50 pessoas, havia apenas duas ou três crianças, mas o clima de brincadeira infantil logo se espalhou. Com o espetáculo formalmente iniciado, os recursos que mobilizaram mais a plateia se valiam do texto, como quando Ismael comenta sobre “Ladrões, assassinos e políticos, ou seja, gente da pior espécie”, ou Jonas responde que só viu o mar navegando nas redes sociais...

A atenção do público, majoritariamente adulto, parecia mais estimulada quando surgiam efeitos de encenação engenhosos, como o passeio da sereia e o sobrevoo da gaivota, ou no caso de conflitos não tão infantis, como quando Jonas experimenta pela primeira vez álcool.  A consternação geral veio com o grand finale, quando Ismael é devorado pelo capô/mandíbula de Moby Dick. A cena é de tal impacto que mesmo o esforço de Jonas ao acender um sinalizador para recuperar o foco da cena e concluir a peça é prejudicado. Os comentários colhidos junto ao público iam desde considerações sobre o estado de conservação do Fusca até a inventividade da encenação.

A segunda apresentação foi no Parque Mal. Mascarenhas de Morais, na tarde ensolarada de sábado, no Bairro Humaitá, zona norte de Porto Alegre. Se no Centro o desafio era afirmar-se frente a múltiplas atrações que concorriam pela atenção do público, no caso do Humaitá o clima foi de acolhimento. O local da apresentação recebe mensalmente montagens e atividades promovidas pelo grupo Mototóti, dentro do projeto “Se Essa Rua Fosse Minha”, ou seja, o Fusca iria encontrar uma plateia receptiva e acostumada com códigos e jogos teatrais. A apresentação atrasou, mas isso não foi relevante – pelo microfone, a produção convocou o público e em poucos minutos a plateia estava acomodada em banquinhos plásticos fornecidos pelo Ueba e em cadeiras de praias trazidas pelos próprios espectadores. A descontração ainda ganhava o incentivo de uma caixa cheia de bergamotas, à disposição do público próximo de 70 pessoas.

O Ueba adaptou-se rapidamente à nova situação. Se, no Centro, o público criava um semicírculo bem definido e compacto, no caso do Humaitá a plateia estava mais dispersa, organizada em assentos, dividida praticamente entre adultos e crianças. Imediatamente, as piadas ganharam ar de intimidade, e até um dos vários cães que teimava em participar da cena foi ameaçado por Ismael de ter sua garganta cortada... Algumas cenas foram estendidas, em um claro investimento no humor visual – exemplo da briga de espadas, concluída com um divertido planchaço nas nádegas do pirata. Como de esperar, as cenas de fogo e dos tubarões, além do sumiço de Ismael dentro do capô, comoveram os  pequenos.

A terceira apresentação, junto ao Arco do Expedicionário, no Parque da Redenção, na tarde de um domingo de sol, foi a mais acidentada. Os microfones sem fio emudeceram por diversas vezes, devido a variações na corrente fornecida pelo gerador, segundo explicação do técnico do Ueba, o que obrigou o elenco a um sobreesforço da voz e a repetições das falas para permitir a compreensão do público. Isso, sem dúvida, quebrou o ritmo do Fusca. O público, bem mais numeroso, repetiu a formação vista na primeira apresentação, dispondo-se em semicírculo  compacto com um raio bem maior que o formado no Centro,o  que dificultou o jogo de aproximação dos atores no início do espetáculo. Numa situação dessas, talvez fosse indicado multiplicar as piadas dirigidas aos espectadores, tentando um “aquecimento” da plateia, mas o elenco parecia sem naturalidade, talvez pela insegurança e pela desconcentração que as falhas no som certamente provocaram.

Feitos os relatos e colocadas algumas observações sobre graus de eficiência de algumas opções de encenação, cabe registrar algumas ideias que ficam como ponto de partida para futuras discussões:

- o Ueba Produtos Notáveis fez uma opção pela verticalização dos espaços. Além do Fusca em cena, do tombadilho montado sobre o teto do veículo e do mastro, que também teve uma função dramática, em uma passagem da peça eram agitadas duas grandes bandeiras que chamavam a atenção, evidente, pelo movimento, mas ainda pela sua altura

- o início da peça, com o bate-bola entre atores e espectadores, sinalizava que todos se juntariam numa brincadeira de faz-de-conta

- o uso dos bonecos articulados  e do drone agregou um tom high-tech à montagem que encantou adultos e crianças não apenas pela tecnologia, mas, especialmente no caso da sereia, também pela delicadeza dos gestos

- o uso de amplificação, ao passo que dispensa o ator de esforços na voz, acaba chapando a fonte sonora e eliminando a tridimensionalidade e a noção de distância de quem fala

- a utilização de um automóvel como elemento importante na encenação não é inédita (podemos lembrar do filme “Herbie, se meu Fusca Falasse” e da “camicleta” que Shazan e Xerife pilotavam em um seriado dos anos 1970), mas situá-lo em um ferro-velho, com todo o potencial de criação que um local assim sugere, é um ótimo ponto de partida

- a dramaturgia apostou em um desenho simples e direto, de domínio das crianças: a jornada de autoconhecimento e de auto-superação conduzida por um mestre. Se, ao final, a trama não  cumpre claramente o ciclo, que implicaria um retorno ao plano do realidade, fica o que é o pensamento nuclear da montagem: navegar é preciso (última fala de Jonas), brincar é preciso, fabular é preciso

 

 

 

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