As Aventuras do Fusca a Vela no Sertão
O fusca navegou pelas estradas do Sertão Nordestino
Por Jonas Piccoli
O Sertão encanta, atrai e fascina, pelo menos para nós, navegadores do Grupo Ueba Produtos Notáveis. Poder circular por terras distantes, de fusca, conhecendo um povo muito querido foi uma experiência indescritível. Vamos tentar descrever um pouco, traduzindo em palavras essa jornada pelo Ceará.
Sobre o termo, “sertão”, há duas versões para explicar a origem da palavra. A primeira sustenta que os portugueses, ao saírem do litoral brasileiro e se interiorizarem, perceberam uma grande diferença climática nessa região semiárida. Por isso, a chamavam de "desertão", ocasionado pelo clima quente e seco. Logo, essa denominação foi sendo entendida como "de sertão", ficando apenas a palavra Sertão. A segunda versão, mais confiável, descreve a palavra como sendo derivada da palavra latina "sertanus", que significa área deserta ou desabitada, que por sua vez deriva de "sertum", que significa bosque
Ali ocorreu o primeiro processo do país de interiorização, entre os séculos XVI e XVII, com o deslocamento da criação de gado do litoral, devido à pressão exercida pela expansão da lavoura de cana-de-açúcar, que era o principal produto de exportação da economia colonial. A área foi conquistada por povoadores de origem europeia com escassos recursos e o desenvolvimento da pecuária possibilitou o desbravamento nos sertões. Os caminhos de boiadas assim criados permitiram a articulação e o intercâmbio entre o litoral nordestino e o interior, dando origem a diversas cidades. De fato, pode-se constatar que a escassez de recursos permanece até hoje. E nesse mesmo local, de berço histórico da pátria, de gente honesta e trabalhadora, que o espetáculo “As aventuras do fusca a vela” aportou. E navegou, por grande parte dele, constituindo em uma verdadeira aventura.
Essa história tem início quando o grupo recebe em sua sede o grupo Cearense Dona Zefinha, para um intercâmbio de vivências culturais. A empatia foi enorme e o contato continuou. Em outubro de 2016, recebemos um telefonema dos amigos Cearenses convidando para participar de três festivais de teatro no Ceará, sendo um deles no interior do estado. O desafio não seria apenas levar o fusca até o Ceará, e sim circular com ele rodando pelo estado. Com bons fazedores de teatro, a loucura virou um desafio, e a emoção foi forte, pois iríamos dirigir o fusca pelas estradas do sertão nordestino. Começou a confusão, a boa confusão. Além de cuidar do envio do fusca, acabamos produzindo outro, para atender a demanda de apresentações no sul. Primeiro passo: mandamos fazer uma revisão mecânica geral, afinal, somos loucos, mas nem tanto.
Superados essas fases, o fusca-cenário duplicado finalmente chegou em Fortaleza, onde fomos recebidos pelos grupo locais com muito carinho e atenção, fazendo novas amizades com coletivos de todo o Brasil que estavam lá para os festivais. A apresentação na capital ocorreu no Festival Popular de Teatro de Fortaleza, na praça dos Leões. Assim como o nome da praça sugere, tivemos algumas feras para domar, os tradicionais bêbados. Tudo dentro dos conformes, tratando-se de teatro de rua. Finalmente chegou o grande dia, nosso fusca cenário ano 79 tinha de mostrar a que veio. A próxima cidade a receber a apresentação ficava 350 km distantes da capital. Seria ao todo 700 km sertão adentro, de Fusca. Para essa missão foram escalados Aline e Jonas, intrépidos condutores desta aventura. O restante da equipe foi de ônibus, no conforto do ar condicionado e seus bancos leito.
Era impossível, não pensar em Antônio Conselheiro, na sua célebre frase: “O sertão vai virar mar...” e com essa frase na cabeça, nos lançamos na estrada rumo a Tauá – CE. A aventura teve já um bom início, na saída paramos para abastecer e o frentista quebra a chave no tanque, forçando assim a primeira parada, de muitas que estavam por vir. Resolvido a chave, finalmente pegamos a estrada, afinal o fusca estava revisado, com o tanque cheio e bons pneus. Saindo do litoral, partindo em direção ao centro do estado, a vegetação começa a mudar, mais ou menos 100km de Fortaleza, começamos a ver a famosa caatinga (do tupi: ka'a [mata] + tinga [branca] = mata branca) é o único bioma exclusivamente brasileiro, o que significa que grande parte do seu patrimônio biológico não pode ser encontrado em nenhum outro lugar do planeta. Este nome decorre da paisagem esbranquiçada apresentada pela vegetação durante o período seco: a maioria das plantas perde as folhas e os troncos tornam-se esbranquiçados e secos. É lindo! Especialmente para quem passa pela estrada, mas para quem mora por aquelas bandas a beleza se transforma em dificuldade, e muita.
Curtindo a paisagem, conversando sobre a vida, tivemos que para por um pequeno probleminha, o primeiro pneu furado. Dessa vez a sorte foi grande, pois foi em frente a uma borracharia. Foi um dos primeiros contatos com o povo do interior e sua prestatividade. Mesmo não estando lá o borracheiro, o pessoal ao lado, ligou e o fez vir para nosso auxílio. Enquanto o concerto do pneu acontecia, o papo rolava solto. Assim o borracheiro nos contou que o prefeito daquela cidade fugiu com todo o seguro dos agricultores, deixando ainda mais miserável o local. O que enraivece, é que esse dito cidadão, conhece aquela realidade e mesmo assim fez o que fez. Em meio a manutenção ficamos sabendo que nossos pneus não eram tão novos quanto achamos que eram, e que eram pneus com câmara, que estoura mais fácil devido ao calor intenso do asfalto naquela região. Realmente, pudemos perceber na prática, que essa era uma dura verdade. O fusca seguiu viagem ao sol escaldante do meio dia. Era impossível não sentir tamanha emoção em rodar por aquelas bandas. Além da vegetação típica, víamos as casinhas, as cabras, urubus, cactos e tudo compõe nosso imaginário, inspirado pelo clássico Vidas Secas. Outra coisa que chama muita a atenção são as placas indicando nomes de rio, sob as pontes. Não há nem sinal de rio, é só uma vala seca e pueril. Conversando com locais ficamos sabendo que ali não chove há mais de 6 anos. Na nossa região, o Sul, quando não chove por um mês é calamidade pública, imagina ficar 6 anos sem quantidade significativa de chuvas! Passamos pela estátua gigante do “Padinho” Padre Cícero e logo já estávamos chegando em Tauá. Foram 8 horas de viagem. Inesquecíveis 8 horas.
Mas a volta é a que marcaria ainda mais nossa história, mas vamos ao Festival. Como de praxe, fomos muito bem recebidos pelo pessoal da organização e da cidade. Assim iniciava o Festival dos Inhamuns, no qual apresentamos As Aventuras do Fusca a Vela e Zão e Zoraida em Mapa para Brincar. Cada uma com cerca de mil espectadores da plateia. A noite apresentávamos e também curtíamos os trabalhos dos colegas, como dos Grupos Dona Zefinha, Laguz Circo – que também tem um fusca e sem saber haviam inspirado uma frase em nosso texto – e dos colegas do Cirquinho do Revirado, entre outros. No dia seguinte partiríamos de volta a Fortaleza. O querido fusca, ou melhor, os pneus do querido fusca, aguentaram o que tinham que aguentar na ida, por que na cidade tivemos uma nova troca e na volta foram dois pneus estourados.
Vamos aos detalhes! Saímos cedo, pois em caso de algum problema viria o comboio do festival umas horas depois e poderia nos ajudar, já que o celular quase não pegava em quase todo o caminho. Ainda bem que pensamos na logística desta forma. O primeiro pneu estourou bem no meio do nada. Nem uma cidade em um raio de 20km, somente uma pequena vila, como no máximo 100 habitantes. Nós nos olhamos, respiramos fundo, e percebemos que não tinha como sair do lugar com o carro, pois estraçalhou o pneu. Voltamos caminhando até a vila, que devia estar a uns 2km de distância. Chegando próximo, perguntamos se havia uma borracharia próxima. Um rapaz tenta explicar, mas desiste e acaba nos oferecendo carona em sua moto com a típica frase: -Sobe aí que te levo lá! Meu espírito rasgou-se ao meio. Não tenho como deixar a Aline ali sozinha e seguir com aquele motoqueiro que nunca vi na vida. Ao mesmo tempo que pensei isso, ela, parecendo ler meus pensamento, me fulmina com o olhar e gesticula freneticamente algo que pude entender como: VAI! Como um robô fui. E ele realmente me levou para um borracheiro, o seu João, que prontamente me atendeu. Pegou sua moto, no meio do caminho embarcou a Aline (que estava andando sozinha pelo sertão com a esperança de chegar a borracharia que eu fui levado). Todos a bordo, em motos sem capacetes, fomos para o Fusca. Creio que todos já se perguntaram porque não trocamos o pneu ali mesmo, usando o estepe, não é? Acontece que na hora de mandar o fusca para o Nordeste via cegonha, não havia espaço para tudo que tinha de embarcar, então e priorizamos o material de cena. Eis que naquele momento nos sentimos muito burros!
Seguindo, retiramos o pneu com problema e voltamos a borracharia. A Aline permaneceu ali aguardando junto com a equipe técnica, que aquela altura já tinha adiantado a viagem e nos alcançou. Seu João me levou a sua borracharia, que fica junto a casa aonde mora. Sua esposa fazia de tudo para agradar, como se fosse uma visita. Ofereceu café e até merenda. Adendo, o seu João não conserta pneus de carro, só de moto, mas mesmo assim, ele resolveu nos ajudar a consertar para seguirmos viagem até a próxima cidade aonde conseguiríamos o concerto. A conversa fluiu. Falamos sobre tudo, sobre o Nordeste e sobre o Sul, sobre a situação econômica e sobre o teatro. Eles tinham ouvido no rádio que os grupos estavam se apresentando em Tauá e ficaram super empolgados por nós sermos um daqueles grupos. Foram acordar a filha para conhecer um artista. Ela ficou empolgada e eu envergonhado. Pude perceber que ela é muito esperta, tem como plano se formar e voltar à vila para ajudar o local a prosperar. Uma das frases que mais me marcou na conversa foi: - Então você já viajou por todo o mundo, conhece bastante coisa? – Pergunta ele. - Mais ou menos – respondi – já viajei pela América Latina e Europa. - Então hoje, você conheceu um dos lugares mais pobres do mundo! – Respondeu com um sorriso. Tudo terminado, me despedi da família, ele pega sua moto, eu pego o pneu, monto na garupa e vamos de volta ao fusca e a Aline. Ela, conversando com o pessoal da técnica do festival, que parou o caminhão e ficou ali fazendo companhia, junto com o primeiro amigo que nos levou ao borracheiro. Seu João troca habilmente o pneu e prepara-se para partir. Vou até ele e pergunto qual o valor pelo conserto, ele me olha com certo ar de indignação e responde: - Nada não, agora a gente é amigo! Confesso, que me emocionei, senti lágrimas brotarem. Não só pela atitude gentil, mas por vivermos em um mundo tão egoísta, mesquinho e vil que quando encontramos pessoas assim pela frente, nos arremata.
Chega a causar um estranhamento. Após insistir, e muito, argumentei então que era um presente, assim ele aceitou um valor simbólico pelo seu trabalho. Ele seguiu viagem de volta ao vilarejo e nós, de volta a nossas vidas e ainda com muito chão até Maracanaú, nosso próximo destino. Aquele encontro foi uma grande lição pra gente. Obviamente, o pneu furou de novo. Fomos acudidos pelos organizadores do festival que vinham em seguida. Eles foram cerca de 40km a frente, compraram pneus novos, sem ser de câmara, e assim que resolvemos de vez o problema e pudemos seguir viagem. Lá se foram 12 horas de viagem. Finalmente chegamos em Maracanaú para o Festival Nacional de Teatro de Rua do Ceará e revemos nossos amigos que estavam em Tauá, além dos grupos Pavilhão da Magnólia, Garajal e Prisma. Em novembro, então, o fusca navegou no mar do sertão, e lá nos apaixonamos mais ainda pelo Nordeste. Nossa gratidão ao 7º festival popular de Teatro de Fortaleza, 9º Festival dos Inhamuns e 3º festival nacional de teatro de rua do Ceará que nos proporcionaram esta incrível e inesquecível vivência.