A Mãe e o Monstro na Amazônia
Por Aline Zilli Quando criamos uma obra artística queremos que ela ultrapasse as fronteiras e ganhe o mundo. E quando isso realmente acontece algo na gente muda e transborda. Foi assim a experiência de levar o espetáculo A Mãe e o Monstro do sul do Brasil para o coração da Amazônia, mais precisamente em Tefé, no Estado do Amazonas. O convite de participar do Congresso “Mulher, Justiça Social e participação popular”, organizado pela Dr. Rita de Cássia, foi um momento ímpar para o Grupo Ueba, afinal não é sempre que temos a oportunidade de atravessar mais de 4.500 km em direção ao desconhecido e fazer a diferença com nosso trabalho. O acesso a cidade de Tefé é realizado somente por barco, que dá dois dias de viagem da capital de Manaus, ou avião. Nosso transporte foi via área, e lá de cima começou o encantamento e se arrepiar ao ver o colorido encontro do Rio Solimões com o Rio Amazonas. Após a aterrisagem, outra boa surpresa foi o simplicidade e simpatia do povo de Tefé. Também foi hora de constatarmos que estávamos isolados das comunicações via celular e internet. Fomos inundados pela diversidade de costumes, cores e sabores da Amazônia. Visitamos o Mercado Público que exibe ao ar livre, e sem refrigeração, carnes de gado ou peixe, além de iguarias que nem saberíamos o nome ou sua utilidade, mas que por lá são bem populares. Enfim, foi possível entender um pouco do funcionamento daquela comunidade. E da desigualdade social e de gênero que lá existem. Era hora de preparar o espetáculo, ajustar cenário conseguido pela produção local, e se preparar para apresentar no calor de 40 graus junto com uma umidade sufocante. A atriz Aline Zilli vestiu-se de Dona Coisinha, personagem do espetáculo que passa por diferentes preconceitos e abusos, tanto físicos, sexuais quanto psicológicos. Na plateia mais de 300 mulheres, em sua maioria ribeirinhas que vivem do extrativismo florestal, reunidas em uma área de convivência no meio da Universidade do Estado do Amazonas. Inicia o espetáculo nas três badaladas de Moliére. Para a maioria da plateia era a primeira vez que assistia a um espetáculo de teatro, para a atriz era um desafio continuar sem desmaiar em função do calor no local. A troca aconteceu. Plateia e artista em sintonia fina, jogo de cumplicidade e confissão. Todas viviam as mesmas mazelas, às vezes com lágrimas escorrendo ou uma gargalhada que soava como um desabafo. Foi sem dúvida um momento único naquelas vidas. Sabiamos que as mulheres extrativistas passam o dia coletando sementes e insumos para vender como matéria prima para grandes indústrias de cosméticos arrecadarem milhões e para elas pagam trocados. Além dessa exploração financeira, outro problema grave é de saúde. Problemas na coluna, na bexiga, na pele, dentro outros. E o que nos mais comoveu, é que as meninas, mulheres e idosas, mesmo tendo essa jornada pesada no extrativismo, ao chegar em casa iniciam uma terceira jornada de trabalho, limpam, cozinham, cuidam dos filhos e muitas vezes são obrigadas a servir seus companheiros na cama, mesmo quando não há consentimento. Voltamos ao final do espetáculo. Nos agradecimentos, uma mulher levanta com lágrimas nos olhos, pega o microfone, abraça a atriz e diz para todas que ela poderia ser a Dona Coisinha, pois fora violentada na sua infância. Após esse relato, mais e mais mulheres começaram a se levantar e relatar experiências de vida como da personagem. Uma das mulheres até pediu ajuda das colegas de sua comunidade pois que seu marido estava ameaçando espanca-la quando chegasse em casa, justamente por estar ali naquele encontro reivindicando melhoria em sua condição de vida. Silenciosamente ficamos ali ouvindo, e até mesmo sofrendo, junto com os depoimentos cruéis, bárbaros e emotivos que foram desencadeados pelo espetáculo. Foi um momento importante pois muitas mulheres puderam finalmente desabafar e pedir ajuda , quebrando o silencio, e o tabu, sobre assuntos tão importantes. O retorno pra casa dessa viagem foi muito diferente das demais. Aquele momento catártico ficou gravado na alma. Esta apresentação certamente foi um divisor de águas, ou talvez um encontro, como o encontro dos rios. Não é possível descrever as sensações tão diferentes que tomaram conta da atriz e do diretor do trabalho. O que marcou foi a experiência da diversidade, da cumplicidade e certeza de que a arte é, se não o fim, o caminho para um mundo mais humano e digno. A arte transforma o mundo ao seu redor!
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