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Márcio Silveira dos Santos


Nasceu em Porto Alegre/RS.

É professor-pesquisador com Licenciatura e Mestrado em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é Doutorando no Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina.

É ator, diretor, dramaturgo e palhaço no Grupo Manjericão/RS. Articulador da RBTR – Rede Brasileira de Teatro de Rua e membro do GT Artes Cênicas na Rua da ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas.

De 2010 a 2014 foi representante da sociedade civil no Colegiado Setorial de Teatro/RS no CNPC – Conselho Nacional de Política Cultural/DF.

E-mail: marccioss@yahoo.com.br

 

Reflexões sobre o processo dramatúrgico da peça

O Bom Quixote - Delírio Urbano

Por Márcio Silveira dos Santos

O Princípio do Delírio

Em meados do ano de 2010 fui convidado pelo Grupo UEBA Produtos Notáveis, com sede na cidade de Caxias do Sul, localizada na serra gaúcha, para participar de um novo projeto. Consistia na realização da dramaturgia de um espetáculo de teatro de rua com base no livro Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Afeito a desafios, aceitei com muito gosto. Realizamos uma série de reuniões com a equipe. Agregaram-se depois a figurinista Raquel Cappelletto e Fernanda Beppler para criação musical. O Projeto foi contemplado com o Prêmio Anual de Incentivo a Montagem Teatral, da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul/RS.

O Grupo UEBA em seus 08 anos de existência (o texto foi escrito em 2012) vem desenvolvendo um trabalho inédito no interior do Rio Grande do Sul, seus trabalhos primam pela pesquisa de linguagens e abordam uma série de temas ligados ao humano frente a adversidade dos tempos que vivemos. Sua cidade sede, há décadas é palco não só da festa da uva, mas também da gigantesca produção das indústrias metal-mecânicas. Um exemplo disso é o conglomerado de Empresas Randon, surgida em 1949 e hoje é composto por empresas líderes na América Latina.

Conta com a mais completa linha de equipamentos para o transporte de carga terrestre, com seus veículos rebocados, vagões ferroviários e veículos especiais. Atuam, ainda, nos segmentos de autopeças e sistemas automotivos, além dos serviços de consórcio e de banco. Mantém uma rede internacional de vendas e serviços, atendendo a mais de 100 países. Cito aqui a Empresa Randon dentre tantas porque justamente nos últimos anos cresceu de forma vertiginosa e assim também cresceu a demanda de trabalho, que por sua vez provocou a imigração de pessoas do país inteiro para a cidade. De 2010 até a escrita deste artigo há um volume muito grande de novos moradores na cidade, “Cidadãos-Quixotes” entre o sonho de uma vida melhor e a realidade de uma cidade despreparada em sua infraestrutura para abarcar tanta gente em um curto espaço de tempo.

Foi na perspectiva de dialogar com a cidade em sua diversidade e história que o Grupo UEBA Produtos Notáveis resolveu montar Dom Quixote pelo viés de uma contextualização do texto clássico de Cervantes aos dias de hoje, um Quixote dividido entre o sonho e a realidade em pleno século XXI, perfazendo assim os caminhos tortuosos de um delírio urbano. Como diz o ditado popular: fala de tua aldeia que estarás falando do mundo, assim seguiu a UEBA em um ano de trabalho. Nos primeiros encontros era nítida a ideia de realizarmos uma dramaturgia colaborativa. Esse termo “dramaturgia colaborativa” ganhou destaque nos anos 2000 (século XXI) com trabalhos de grupos e coletivos teatrais.

Trata-se, a nosso ver, de um processo que tem como antecedentes imediatos a prática da criação coletiva e a experiência do dramaturgismo. Dessa, herdou a pesquisa e a presença de alguém responsável pela dramaturgia na sala de ensaio. O dramaturgista atua muitas vezes como “braço-escritor” do diretor, aliando a criação dos intérpretes, os elementos pesquisados, a visão do diretor e a sua própria na escrita do texto a ser enunciado na peça. (Nicolete, 2010, p.33-34) Ciente de que o processo colaborativo leva mais tempo na sua execução do que o de gabinete, onde o dramaturgo escreve sozinho em seu escritório de trabalho, passamos a nos encontrar semanalmente a partir do mês de abril de 2011. O Grupo após leituras de alguns capítulos, previamente selecionados pelo diretor, passava a improvisar cenas.

Eu procurava filmar, fotografar, anotar tudo que conseguia. Após voltava para meu computador e num misto de transcrição das falas das improvisações, mais o texto de Cervantes e uma série de outras fontes: literárias, cinematográficas, quadrinhos, pinturas, gravuras, desenhos, artigos, dissertações e teses, estabelecia um texto novo a ser improvisado, depois reelaborado para novos ensaios. Este processo se deu até o dia da estreia em 27/11/2011 na Praça Dante Alighieri, Caxias do Sul/RS. Delirando Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) escreveu sua obra-prima Dom Quixote de La Mancha (1605), opondo-se as novelas de cavalaria muito em voga na época, segundo introdução de seu histórico na edição brasileira: Dom Quixote, obra concebida como novela curta, inspirado num caso real de loucura, destinava-se a combater a cavalaria andante. Opondo-se à irrealidade das novelas de cavalarias, ainda muito lidas na Espanha da época, Cervantes teria pretendido fazer uma sátira dessa “propaganda” cavaleiresca e dos que se armavam cavaleiros às cegas. Mas a caricatura de um estilo fantasioso se transformou no retrato da aventura humana, no perfil do homem dividido entre o sonho e a realidade.

Dom Quixote e Sancho Pança, surgidos da fantasia do artista, aparecem vivos como se fossem personagens históricas. (Saavedra; Azevedo: 1981). O autor escrevia na forma de capítulos, tramando aos poucos as aventuras e desventuras do cavaleiro da triste figura, cuja primeira parte foi publicada em 1605. Cervantes havia sido preso, por ser acusado injustamente de desviar verba quando desempenhava a função de coletor de impostos. Ficou na prisão por dez anos, neste período o autor deixou de lado sua obra-prima, passou a escrever outras obras de sucesso, mas nenhuma comparada a Dom Quixote. Seu romance de cavalaria fazia tanto sucesso que autores impostores criavam novas histórias passando-se por Cervantes. Irritado, Cervantes retomou a escrita e concluiu a segunda parte, dando assim o final que temos hoje.

Onde ironiza sua própria condição, criando um capitulo de duelo entre Dom Quixote e um cavaleiro impostor que se diz Dom Quixote. Na montagem para teatro de rua o Grupo UEBA desejava contextualizar muitos capítulos da obra no ambiente da rua, assim como os personagens de Cervantes. Construímos cenas com uma série de “figuras” que habitam nosso cotidiano das ruas, como: O vendedor de banha de peixe boi, que vendia o Bálsamo de Toboso (terra de Dulcinéia); o anunciante de ofertas das lojas de rua, concebido através de uma atriz sobre pernas de pau anunciando as lojas Quixote, fazendo aqui uma alusão ao escritor impostor, onde o personagem enfrenta o anunciante chamando-o de falsário.

Outras cenas como o castelo transformado em bordel, onde o personagem em seu delírio é condecorado “Dom Quixote de la Mancha” por um cafetão; os moinhos de vento contextualizados por um bonecão de posto, onde se lê: Postos Moinho. O que gerou uma cena de luta muito interessante entre Quixote e o bonecão inflável. A história de Miguel de Cervantes nos proporcionou a liberdade de adaptação da obra para uma dramaturgia por vezes engajada e fragmentada (Lehmann: 2007) na sua evolução, a exemplo da inserção de um monitor de LED 42” onde são exibidas cenas filmadas de Dom Quixote deslocando-se no mundo contemporâneo: na escada rolante de um shopping, pegando um ônibus, correndo no meio do transito, revelando o desajuste do personagem frente ao mundo atual, resignificando o que Quixote diz constantemente como sendo “obra dos feitiços de Fristão” seu inimigo imaginário.

Mas a grande inquietação inicial permaneceu por muito tempo no processo: de que forma sintetizar, condensar essa aventura escrita em dois tomos? Através de uma leitura minuciosa podemos perceber na obra as cenas de fino trato irônico do autor ao seu tempo, que proporcionaria trabalhar com uma estrutura sintética e de entendimento na rua. Tendo em vista que no espaço da rua o texto curto permite ao espectador transeunte entenda e reflita a situação dos personagens em poucos minutos, estabelecendo assim uma “cerimônia social diferida” (Duvignaud, apud Carreira: 2007). Um exemplo é a transposição do capitulo onde Quixote escreve uma carta para Sancho entregar a sua amada Dulcinéia.

Na história original é exposta a carta desenhada na pagina com seus versos. Já na peça ela é lida por um ator/radialista sobre andaimes, ao mesmo tempo em que o ator/Quixote empunha uma guitarra e toca distorcidamente enquanto declama/traduz para o inglês os versos. O público acompanha e vibra numa cena melodramática de Love Story. O teatro, ao contrário da literatura impressa, que é consumida por indivíduos em isolamento, é uma experiência coletiva e, por isso mesmo, acontece que as emoções que provoca dão-se em público. Assim, a mensagem contida em uma peça (seja ela política ou de qualquer outra natureza) sempre coexiste com a demonstração da recepção que merece de uma unidade social, a coletividade da plateia. (ESSLIN: 1978, p.109-110). Naturalmente na contextualização texto/cena em uma cidade industrial, não poderíamos deixar de estabelecer conexão com a vida dos trabalhadores.

Há um momento em que Quixote confronta um rebanho de ovelhas pensando ser um batalhão a lhe desafiar. Na dramaturgia/encenação realizou-se um confronto dos trabalhadores em greve, reivindicando melhores condições de trabalho na indústria. Proporcionamos assim a um capitulo do texto, que em primeira analise não teria função, a um caráter de grande importância dentro do argumento da encenação e texto, “com seu contexto cultural, histórico, ideológico, a fim de não abordá-lo num vazio formal.” (Pavis: 2003 p.405). Realizamos uma adaptação à altura da reflexão de Bentley (1991) a cerca do papel do dramaturgo em sua sociedade, onde tem também a função de um “pensador” a cerca do seu tempo, provocando, produzindo reflexão no público e atores.

O Delírio Urbano

O espetáculo, à medida que avançaram os ensaios na rua, tomou corpo e forma. Ganhou cenários com andaimes, equipamentos de luz e som, adereços, bonecos, máscaras, carrinho de supermercado, ventiladores industriais, dúzias de figurinos e duas bicicletas como montarias. Nas cenas finais desenvolvemos o ápice da encenação através da presença de Dulcinéia, que na obra de literária nunca fora vista. Embora as aparições permeassem a evolução da peça, somente no final ela é personificada de fato, representando o novo versus o velho.

Criou-se um duelo entre duas divas norte-americanas da música pop mundial: Britney Spears e Lady Gaga. Representações do grupo de Dom Quixote e o grupo do Cavaleiro da Lua Branca, que vence e Quixote volta ao lar. Esse “novo” representado pela cultura pop, dita evasiva e sem conteúdo, em tempos de excesso de informação via internet, frente à cultura dos valores antigos, do interesse a leitura de livros, percorremos um caminho próximo ao que Roubine (2000 p.86) chama de “o artista face à história”, onde o teatro não pode ficar indiferente ao seu mundo. Um teatro de rua como propulsor de diálogo e reflexão social. Exemplificado também na cena anterior, onde vemos Sancho Pança ganhar sua ilha “Cidade de Baratária” e diante da frustração, da ganância social, da impossibilidade de ser feliz e realizar um governo digno que tanto sonhará, parte para outra aventura, entrega a chave da cidade e diz: “FUI!”

Assim segue o espetáculo “O Bom Quixote: delírio urbano” que vem ganhando as ruas do país de forma galopante. Parafraseando Szondi (2011: 155) a cerca da dramaturgia moderna, digo que este relato de uma possível dramaturgia para teatro de rua, em processo de coexistência com outras, não é um último ato e sim que se inicia um novo processo.

Referencias

BENTLEY, Eric. O Dramaturgo como Pensador. Tradução Ana Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

CARREIRA, André. Teatro de rua – Brasil e Argentina nos anos 1980 – Uma paixão no Asfalto. São Paulo: Hucitec, 2007.

ESSLIN, Martin. Uma Anatomia do Drama. Tradução: Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. Tradução: Pedro Sussekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

NICOLETE, Adélia. Dramaturgia em colaboração: por um aprimoramento. In. Subtexto – Revista de teatro do Galpão Cine Horto, nº7, Minas Gerais: CPMT, 2010.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Tradução J. Guinsburg, Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2003.

ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às Grandes Teorias do Teatro. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2000.

SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. Dom Quixote de La mancha. Tradução: Viscondes de Castilho e Azevedo. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno [1880-1950]. Tradução Raquel Imanishi Rodrigues. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

 

 

 

 

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